Nelson Magalhães Filho: o Blake de
Cruz das Almas
Poemas selvagens: sem títulos,
bulas ou domesticações. Como se, de repente, fossem as barbas do velho Whitman.
Selvagens. Poemas que ecoam em outras (h)eras, outros vincos. Desdobram-se
desordenados. Ou ordenam-se em camadas feito listras de felinos. E se você
dormir, pimba! Eis que lhe tomam num trago. Então, desarme-se. O universo de
Nelson é sem estrelas. Uma lua paira e ilumina os corpos sombrios, lânguidos e
bêbados de quem satisfez o desejo. Fosse nos anos 80 e, bem ao estilo Caio F.,
um de seus autores prediletos, apelidariam-no dark. Ou, quem sabe,
black(e). Não pelo lado escuro da Força, esclareça-se. Mais sinuosamente, eu
diria. Nas sombras, escondem-se segredos, fachos de luz. O poeta tinge a palavra
com sua visão/percepção de mundo. E tanto revela quanto nubla nosso olhar. É
que traça linhas vindas do subconsciente. Ele, generoso, permite que a emoção
suba e, tal qual um anjo, vagueie em seu voo torto, indeciso entre o céu e o
inferno. Nelson é pintor, blogueiro (anjobaldio.blogspot.com) e poeta. Vem de
Cruz das Almas para estabelecer sua mitologia romântica em versos brancos. É,
de certo modo, nosso Blake baiano. E, se o bardo inglês fez de seu tigre a
imagem de um Cristo revolto, a representação aqui será outra (“os tigres
chegaram / os cascos descendo pelo peito”). Tigre, cachorro, cavalo e anjo são
figuras poéticas que se metamorfoseiam constantemente para exprimir uma
rebeldia nada redentora. Buscam, tal como na literatura de seu par, o instinto
primário. Mas não acreditam na inocência. São céticos e conferem à Arte, por
meio das inúmeras citações e intertextualidade, seu uivo de protesto. As
referências são múltiplas. Sobretudo cinema, literatura, música e artes
plásticas. Porém, atente, não quaisquer referências. Nelson gosta das mais
baldias. Rebeldes, você me corrige. Então, junte-se Jim Jarmush com Morrisson,
Radiohead com Blake, Wim Wenders com Jorge de Lima, Tom Waits com Dylan Thomas,
Francis Bacon com Lou Reed, Piva com Basquiat, Nick Cave com Fassbinder... E
perceba que nada é gratuito. Nem mesmo o amor. Em seu discurso de cachorro
rabugento morto em noite chuvosa. Por que é isso que Nelson mais canta: o Amor.
Ao redor, poucos lenitivos (“só o amor é mais amargo que seus olhos”). O perfume
e o sexo embriagam. O cão não late mais, porém, seguindo a lição do mestre
Leonard Cohen, permanece “deixando marcas de um amor sem cura”. O manto frio e
negro nos encobre (“evoco as veias silentes / nesta noite em que encontro a
morte”). O cachorro não dança (“sou de uma raça de cachorro ruim”). Está morto,
mas cobra, aos notívagos, lágrimas doces. Um poema. Uma prece. Pois todos
sabemos que mais dia menos dia os tigres chegarão. E não terá volta.
Lima Trindade
Mestre em Literatura pela UFBA, escritor e editor da
Verbo21
http://www.verbo21.com.br/v3/
Alguns poetas não necessitam de álibi. Ou de se
desculpar por escolherem um caminho menos sacal, numa espécie de mea culpa sem jeito quando confrontados
com o que por aí chamam de contemporaneidade. Existem poetas que nascem de uma
estirpe rara. Dos que insistem em fazer sua literatura sem meneios de cabeça,
sem vacilos, sem sentir medo da incompreensão — como se ser compreendido fosse
simplesmente conceder, entregar os pontos. Nelson Magalhães Filho vem dessa
linhagem. Nobre, irascível, nem um pouco acanhada.
Numa época em que ser poeta é em si um ato de
liberdade e coragem, já que os leitores, o "mercado", os editores e
talvez uma meia dúzia de colunistas de merda aparentemente concluíram que a
poesia está agonizando — enquanto uma platéia de cegos e surdos pede mais
barulho, concisão, novidades estilísticas para que ninguém, no fim das contas,
entenda picas e permaneça a se enfadar das novidades por eles mesmos desejadas
—, surgem novos escritores que pouco se lixam para tais previsões. Nelson vem dessa
linhagem rara. Ao lado de outros nomes poucos conhecidos do grande público,
contemporâneos de Nelson, como Sandro Ornellas, Ediney Santana, Lupeu Lacerda e Kátia Borges, só para citar
alguns que admiro.
Cachorro rabugento morto em
noite chuvosa (Edições MAC, 2010, 69 páginas) em suas poucas
páginas é um livro que mostra um tipo de poesia vigorosa e exuberante. Calcada
na nobre tradição dos grandes autores que marcaram, com justiça e sinceridade,
a escrita poética. Nomes que não se aquietaram na certeza das fórmulas prontas,
dos salões literários, que muitas vezes pagaram um alto preço por conta de suas
escolhas, mas que escreveram com absurda coragem e com domínio sobre essa coisa
chamada vida e sensibilidade, além de dominar o que muitos por aí chamam de técnica
— pois agora sei que a escrita não prescinde da técnica no fim das contas,
ainda que o autor negue e que seja algo inconsciente; algo como um fio condutor
que permeia a obra do artista, uma fórmula que não serve para repetir e cansar
o leitor, mas como afirmação de um estilo, de uma busca.
Nelson não teme o exagero. E não o utiliza somente
como recurso literário, mas sim como inspiração. Parece não se incomodar em
usar o texto longo e palavras que estão em desuso não por falta de mérito, mas
pela insistente novidade que um certo e exagerado minimalismo espalha e que
surge com a desculpa de que temos pressa, de que tudo é fragmentário, de que
textos longos e carregados de fúria não interessam mais — e tudo parece cair
numa espécie de repetitivo haicai, num concretismo meia-boca, numa poesia
temerosa que se disfarça de inteligente.
Quando Nelson, que além de escritor é artista
plástico e produtor de vídeos que podem ser assistidos em seu blogue [ anjobaldio.blogspot.com ], escreve "...embriagado pelo natal
com uma grinalda / de folhas penduradas numa
orelha. / a estridência da música / de nick cave me consome /
em saudades devastadoras. / Suscitar sonhos de nuvens luminosas-fragores, / pássaro-noturno
transcender / drásticas marés..." ("Vou andar de bicicleta
pela tarde", p. 34), não é com a mesma pegada de um poeta que admira o
passado e nele se refugia como forma de não correr riscos. Ele dispensa o
recurso dos que, mais uma vez por falta de coragem, buscam um tempo em que tudo
parecia mais romântico, mais pungente e visceral. Apesar de dominar a escrita e
o uso de palavras incomuns, o que Magalhães propõe é uma poesia que possua a
mesma força dos malditos clássicos, mas que dialogue com o presente que também
pode ser inspirador — na medida em que temos Nick Cave, Win Wenders, Radiohead, Jim Jarmush que, como bem
frisa Lima Trindade no prefácio, pode muito bem dialogar com Rimbaud, Blake, Morrison e Dylan
Thomas.
"vivo pastando no mar
negro como peixe-boi / estrela do mar negro percorro temporais selvagens / e
cada vez mais me perco pela afável noite de ontem / o oco de mim vai vomitando
/ um sentimento nostálgico de perdas / espelhos de mortos com seus ossos de
medo" (p. 16).
Nos seus poemas, vemos um autor que exige de si e
do leitor muito mais que uma leitura distraída. Nelson Magalhães Filho, talvez
por ser um artista com muitas possibilidades — o visual em seus textos deve ter
alguma relação com seus quadros e com os vídeos —, brinda o leitor com um livro
que parece pequeno. Mas que possui a força necessária para ser uma obra ímpar.
junho, 2011
Gustavo Rios é autor do livro de contos O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007) e integra a antologia de contos Tempo Bom (Iluminuras, 2010).
Cachorro Rabugento Morto em Noite Chuvosa
Kátia
Borges
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Sáb, 30
de Abril de 2011 10:11
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Tom Waits canta Downtown Train enquanto leio Nelson
Magalhães Filho. A arquitetura de seus versos é a dos sonhos. Cada leitor lhes
empresta sua lógica. Não há segurança, mesmo quando se parece pisar território
firme. De repente, numa frase, prédios semânticos inteiros desabam, "neste
tempo perdido no mar negro", e mitos podem sustentar com apenas um dedo
gigantescas estruturas.
"Arrastados passos nesta rua oscilam/como uma
flor que reluzente chove: a cidade incendiada". Neste cenário diverso,
Salvador parece ainda mais antiga, velho fantasma, com suas ruas largas,
concreto sobre a epiderme de província, horizonte que se abre para todo e
nenhum lugar. Estamos, isto sim, ainda enclausurados, embora libertos.
"Esta é a cidade-sombras/ tão nauseante quanto os ventos escuros".
Sim, a cidade-sombras, que se ergue feito onda,
gigantesca em sua força. A capital, corpo em cujas artérias circula a matéria
viva do poema que vai "pelos becos escuros da Gamboa/vadiando pelas ruas
estreitas/esculpidas de perturbados da Gamboa". Há algo de pop, de mítico,
de rito neste "Cachorro Rabugento Morto em Noite Chuvosa". Há algo
irresistivelmente lírico neste reino, que é Cruz das Almas, Salvador,
Dinamarca.
Sim, há algo de príncipe neste Blake, como o chama
Lima Trindade. Há algo de black nestes versos brancos. Há algo de corajoso
neste lirismo, que faz paisagens assomarem, assombrarem, desenharem-se,
inusitado e claro e escuro, "dentes postos sobre a mesa como um
escapulário". Há um sonho dentro do outro enquanto o bardo oscila entre o
compromisso com o sentido e a desmedida. "passeiam cães devotos das
hortênsias/navegação à volta de tua nudez desesperada".
Não é verso medido, imitação barata de Sosígenes,
cromatismo fake, crítica sem autocrítica, lirismo sem caráter ou erudição de
almanaque. Nelson é poesia que transborda, esparrama, selvagem, cães, tigres,
dentes e garras no cotidiano. Mas confesso que não pensei em Blake quando li
pela primeira vez os versos de Nelson Magalhães Filho. Pensei em Roberto Piva
(morto em julho do no passado) e no impacto que o seu Piazzas teve sobre mim,
com aquele fluxo poético surreal e beat, que parecia retalhar a cidade de São
Paulo com sua navalha afiada, palavras.
Mas Nelson não é Piva, nem o imita, embora os mova
a mesma noção de que vida e vocação são indissociáveis (o poeta paulistano
dizia só acreditar em poeta experimental com vida experimental). Nelson tem
suas próprias marcas bastante pessoais e originais e com elas traça um
imaginário traço, laço, que envolve poesia, artes visuais e existência. Seus
versos esnobam a ilusão maniqueísta e dão a cara a tapa. Seus poemas são como
quadros, fragamentos de imagens incendiadas. Riffs de guitarra neste universo
lírico de pianinho elétrico, programado eletronicamente graças às indicações
lidas em algum manual. "Flores putas eclodem a concha do tempo áspero em
que os peixes e os insetos exaurindo larvas, me beijavam até sugar-me o fogo de
pedra".
Livrinho pequeno, pouco divulgado, quase artesanal,
embora leve o selo da Edições MAC, editora do Museu de Arte Contemporânea
Raimundo de Oliveira, de Feira de Santana, e distribua sua força entre versos
com as iustrações de Devarnier Hembradoom. Nunca nos vimos pessoalmente, nunca
nos falamos, nunca me deu livros ou CDs com poemas gravados, não o conheço, mas
são tantos os pontos de identificação entre nós que o sinto bem próximo. Talvez
ali, onde Lou Reed canta Walk On The Wild Side, ou onde Jim Morrison faz sua
dança da chuva (tempestade, temporal, ritual) em Light My Fire.
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Kátia
Borges é escritora e jornalista. Publicou três livros de
poemas: De volta à caixa de abelhas (2002), Uma balada para Janis
(2009) e Ticket Zen (2010).