Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

segunda-feira, abril 18, 2022

SARIGO - história em quadrinhos 
Desenhos: Nelson Magalhães Filho
Poemas: Graça Sena




SARIGO

Em seu estudo sobre as relações entre espacialidade e temporalidade na construção de quadrinhos abstratos, o pesquisador Guilherme L. B. e Silveira informa que a produção contemporânea das histórias em quadrinhos tem apresentado uma série de rupturas que se escoram em outras linguagens, na tentativa de se desvincular das estratégias narrativas mais desgastadas dessa linguagem, bem como de seus gêneros cristalizados – super-herói, faroeste, aventura, terror, entre outros. Ele mostra que, principalmente a partir dos anos 1980, uma grande aproximação, das histórias em quadrinhos, com as literaturas, artes visuais e música se apresenta. Seja pela narrativa cotidiana, com personagens não-contínuos, relatos autobiográficos, experimentação visual e textual ou exercícios de sentido pelo ritmo e a mancha da imagem na página, outras linguagens serviram de impulso criativo.

 Assim. o que se busca, portanto, é a exploração das potencialidades de abstração da imagem e da narrativa, a partir da quebra de ritmo no espaço da página, na imagem e no texto construído. A partir de rupturas com a linearidade narrativa, que passa a não se prender ao cânone de três atos – início, meio e fim – vê-se a possibilidade de que as histórias em quadrinhos passem a se apresentar como um conjunto de imagens justapostas coerentes conceitualmente, que pode manter uma narratividade, mas não se prende a ela em sentido restrito.

 Nessa vertante, foi produzido Sarigo, um fanzine de 14 páginas com poemas de Graça Sena sobre desenhos de Nelson Magalhães Filho. Embora sem linearidade, Sarigo apresenta uma realidade distópica onde os personagens Ângela (uma angustiada sobrevivente do caos) e Brasilton (um sariguê anti-fascista que tenta burlar as truculências do manda-chuva do pedaço),  vivem suas trágicas histórias.  O encontro dos dois se dá por meio de monólogos em que narram sobre um país em frangalhos permeado pela violência e pelo obscurantismo.

 Graça Sena 




 

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