Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

terça-feira, março 13, 2007

Nelson Magalhães Filho. Série 2004-2006, mista s/ papel, 70X50 cm.

QUANDO NOITE

Ele ascendeu na kitchnette bem tarde naquela sexta-feira, depois de pagar vinte reais para aquela mulher das grossas pernas marcadas com seus enormes olhos violetas bem ali no meio da praça deserta com árvores garbosas de outros sigilos, e já escovando os dentes na pia velha depois de vomitar a fada verde, lavou o rosto impudente, deu uma mijada forte no vaso branco, imaginou pela área dos fundos um céu repleto de estrelas cingidas de gerânios, e foi-se deitar. Mas estava estranhamente aporrinhado e a chuva nas reluzentes vidraças pelas luzes vagabundas dos postes não era tão fina como ontem. Quando se deitou, não quis saber da bunda pálida e sórdida da tia Clodoalda toda ingênua, toda velha e toda solteirona dormindo pesadamente no pequeno sofá da única sala, nem tão pouco para um jornal aberto no chão anunciando mais uma matança bizarra de crianças e cães. E aí ele afogou-se todo na cama áspera para apenas lembrar da Rita Lee que dizia não ter hora para morrer por isso sonhar. Uns desenhos malucos na parede do quarto feitos com pastel seco, um monte de roupas sujas embaixo da cama lambuzada de vômitos e outros bichos, uma radiola velha com apenas um disco de vinil empoeirado dos Rolling Stones, e a cabeça fervia com a música Sister Morphine. Mas era cada noite variegada que ele só queria reter na memória se estava mesmo ficando insensato, se tudo não passava de sua imaginação cheia de febre, de sua paixão intensa pela imprudência, ou se tudo não fosse um ainda. Porque então suas mãos compridas afundavam por entre seus cabelos encaracolados e sumiam lá dentro. É. Depois os braços tatuados de rosas negras, o tronco, as pernas, e por último os pés entranhavam cabelos adentro fazendo um barulho parecido com um grunhido de porco ou javali, até restar apenas alguns pequenos segundos para que tudo recomeçasse às avessas, com a aparição sinistra daqueles pés ossudos e lindos, das pernas, do tronco, dos braços tatuados com rosas negras do amor e por fim as mãos delicadas que se agitavam no ar e soltavam aqueles cabelos entrelaçados e castanhos. E ele ria pouquinho para depois desta vez agora conseguir dormir.

Nelson Magalhães Filho, 1981


3 comentários:

Braga e Poesia disse...

acabei de fazer um comentário e ser perdido, esse modelo de escrever letrinhas eu acho um saco, só faço insisto nos comentários porque o blog é seu nelson, bem vamos resumir: esse conto nos faz extranhar a mediocridade, é um conto aula, aula de doutorado. adorei o conto e vou estuda-lo mais um pouco e de forma demorada.

Anônimo disse...

Nelson,este conto nos leva para instantes de solitude, muita reflexão e avaliação do nosso caminhar.Porém de forma leve,brilhante e ausente de auto-compaixão.

Anônimo disse...

a primeira lição é que é preciso buscar os avessos, sem medo e sem vexame;
a segunda lição é que nem tudo é o que parece ser.
esse conto muito nos conta de nós mesmos, nelson vc é psicanalitico sem ser maçante, é por isso que eu sempre lhe disse vc não é mediano, vc está muito mas muito mesmo acima da média e quem diz isso não sou são as suas poesias, suas pinturas e seus contos, vc só não ganha baba quando joga com edinho.