Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

domingo, março 15, 2009

Nelson Magalhães Filho. Série dos autorretratos 2008, acrílica s/tela, 70X50 cm


poeta

redemoinho antigo

vaga visão maldita

caso ela entrasse

e visse a fundura

e advinhasse meu sonho negro.

Nelson Magalhães Filho

sábado, março 14, 2009

Cordeiros. Ilustração de RUELA

FOZ

Sou a embocadura
das mortes,
mas um aviso aos agonizantes:
sou uma paisagem inadequada para a deposição dos seus restos
mortais.
Sou um vórtice, indiferente a qualquer segredo,
no fundo, bem no fundo dos seus olhos de vigília
nada vejo,
nem ouço,
sequer uma voz
enternecida
a dizer-me:
abandonas este osso.
Como um inseto
aguardo paciente
sob um móvel polido
a chegada do sangue noturno, como uma muamba,
pernoito
sob os escombros
dos contrabandos.
Desguarnecida,
a dor
persiste lutando
nas raias das piscinas,
então busco
outras águas
sossegadas
para espalhar
minhas cinzas,
bem longe, bem longe
de mim...

Luciano Fraga
nesta terça

sexta-feira, março 06, 2009

Nelson Magalhães Filho. Série dos autorretratos, 2008. Acrílico s/tela, 70X50 cm

O PACIFICADOR
Ó conciliador da suspensa sensibilidade
nas profundas várzeas das sinistras flores
exaltadas por paixões e impossíveis luzes,
delírios, ornamentos
com iluminuras e vertigens...
Ó filho das imensas águas que nunca dormem
nem fazem sombras com as negras candeias,
o estranho canto dos passarinhos
no almíscar atordoados
floresce buquês no vaziar da vênera noite
entre cerejeiras, veneno e jasmins
tão vastos como o mal.
Ó conciliador da suspensa sensibilidade
tu és o cisne se dormindo com flores nos cabelos
que dança a mente no veio da felicidade,
na vênus entre o mormaço do mar
ressaltando das ondas o cavado amor
neste verdejado ventanejar que calmo perpassa
onde o arvoredo reluziu.

Nelson Magalhães Filho, em As Luminárias, 1982