Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

quinta-feira, dezembro 21, 2023


 Nelson Magalhães Filho. Série Anjos Baldios, acrílica s/tela, 70 X 50cm.


fábulas de figueiras imoladas dentro da noite por acaso astúcias

são imundícies? viva a prosódia mordida suscitando indagações.

a música vinha pela janela parecia o noturno em fá sustenido maior

de chopin nesta noite que peguei um livro de john fante.

o quarto amanhecia como se alguma coisa, um perfume arrogante

sei lá, mas desobscurecia. às vezes cândida gostava

de reter a aurora em suas mãos regeladas: “você prefere tocá-la

mais tarde?” ah, esses arrepiantes quintais da infância, essas noites

de pelúcia! (talvez saídas de uma gravura gótica ou de um cochilo

de albrech durer). tudo isso é cândida que sofria de doenças

imaginárias. navegávamos nas poções de folhas arrancadas

pelas influências malévolas dos tempos recuados. o céu dessa cidade

nuviosa é como um besouro dentro de um espelho noctívago

(como dois grilos brigando cri cri cri) lagarta de fogo na muralha ruiva

do meu quarto. decidimos no caminho ver tudo que fosse alheio

e anotar no diário: sandália caída pelo avesso, osso de jasmim ouriço

do mar, carretel de linha branca, etc. aí veio o mesmo ímpeto

uma maldade intensa celestial apossando-me e tecendo, bebendo

mandrágoras, a aparição................... não é muito provável

que a lua embaciada narcotize amanhã: lá vem fernando pessoa

e Lupicínio: os camaleões são eternos inatingíveis. um relógio

ancorado numa estrela em vai-e-vem, o mundo é varrido

pelos anjos de mau agouro, tricotar teus cabelos minha amante

buliçosa mariposa talhada no peito, bebo tanino, farejo uma cravelha

num deserto improvável a busca do bálsamo olor das vestes

rasgadas nestes apontamentos do absurdo encurtando

minha aflição cortes intensos estreitos nosso futuro atávico talismã

marcado sempre na melancolia. aí gosto de olhar bem no profundo

de seus olhos de gato, e depois dou uma mijada na porta da frente.


Nelson Magalhães Filho