Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

quinta-feira, junho 29, 2006

MARIELA

Mariela é a angústia
que nutre os oráculos
de meus acasos.
Brilha no ventanejado
entre poças
de estrelas.
Ambrosia sombria
dos oceanos
Mariela é a angústia
de um tempo morto
de parir harpas.
Mariela é o sangue
que não estanca o néctar
de mim.

Nelson Magalhães Filho


O PESA NERVOS, livremente inspirada no texto de Antonin Artaud.

Com Nelson Magalhães Filho e direção de Pablo Sales.

Teatro do Porão da Casa da Cultura Galeno d'Avelírio.

Cruz das Almas (Ba.), dezembro de 1999



ILHA DOS CISNES, livremente inspirada no texto de Samuel Beckett.

Com Tarcísio Santana e Nelson Magalhães Filho. Direção: Graça de Sena

Teatro do Porão, outubro de l996
























Da série Conspirações - 2004
Mista s/ papelão, 100X80 cm
A FLAUTA

Depois que Galeno d'Avelírio
morreu
o pé de abacate que tinha
conformação de extraordinário cessou.
O sapoti, o relógio antigo
desmoronou - maquinismo inocente -
das ressonâncias espirituais.
As flores e o forro
a casa nº522 na Praça da Matriz.
O pé de chuchu aniquilou-se
entre uma lâmina
de acaso
a cerejeira ou o Teorema
de Pasolini,
a erva de passarinho a possuiu,
carnalmente.

Hoje,a poesia do visionário
persegue libélulas
que pousam em minhas armadilhas
coando a transparência
das manhãs de minha cidade.

Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, junho 28, 2006
























Da série Conspirações - 2004
Mista s/ papelão, 100X80 cm
VÉSPERAS VIGIADAS

para Jane Zaidys

Fico olhando uns discos,
Bob Dylan, Ângela Ro Ro, Debussy
uma reprodução de Modigliani
os cachos de meus cabelos sorviam
a densidade pesada da tarde.
Como raiz de uma flor maldita, adquiri um
caduceu
que mantém minha vertigem
numa conjuntura extremamente perigosa
nem quando Béla Bartók vagueia
por Netuno um perfume incurável
açoita-me nesta tarde.
É aí que me perco nos labirintos
de Jeanne Hébuterne numa tragada
de piano. O sol pode baixar sua febre
e destrancá-la do mistério
antes que suas sete almas sejam sugadas
para sempre pelas estrelas e aí,
aí já será demasiada Jeanne Hébuterne
em silêncio
uma mensageira do meu inexistente
uma mágica sem retorno
porque a cidade agora é um vômito verde
versejado pelas ruas
e suas figuras sozinhas
sangradas em segredos também, para sempre,
revelados.

Nelson Magalhães Filho

terça-feira, junho 27, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
cruz das almas city blues,

dilacerantemente escura
pela tarde fustigavam meus olhos a mesa
de jantar
a mesma mesa de flores esverdeadas
pela tua loucura
espreitando meigamente meus seios
inexplorados.

sua essência amar
ga como losna-maior
esta ampulheta mede uma fração de
artemísias...

ao lado do beliche furtivamente
A Lua e os animais, de Jorn
dilacerantemente escura
agitando inefável faca insetos ilimitados
que não acontecem habitualmente
na investigação do espanto.

tenho poder sobre os bichos da tarde.

Nelson Magalhães Filho

segunda-feira, junho 26, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
Deixarei você em suas alucinações
trago uma lanterna
violeta na mão esquerda;
você, uma roseira repleta de
alguma coisa que se inflama violenta.
Estou aqui furtivamente
nesta casa de néctar
preso
nas paredes nos móveis:
seu corpo mente para
o meu desde
que vi sem volta
a dor retrato das horas.
Um perfume feroz corrói
nas tripas.
Teríamos então um instante para
desfazer perturbações, mas
meu beijo vem da flor do láudano.
Não quero você
nas explosões de bolhas brumas-
meus olhos abertos
cicatrizam suas bobagens
sem
fim.

Nelson Magalhães Filho























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm

domingo, junho 25, 2006

choro tua partida
nesta desencarnada manhã

sussurro teu ouvido: agonia
é mansa, esga
um cachorro
um agosto raivoso,

anjos imersos na impudência
se reclusam
cuspindo marés
e desígnios delirantes,
costurava taciturnas
águas pela janela, orquídeas
para te esperar,

até me cercasses com punhais
posuía o mal e a febre
dos santos
beijo desespero.

Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, junho 21, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
um cavalo-bailarino desencravado da terra.
saga dos grifos
a cara do fogo.

faço garranchos coloridos. as banshees.

desapercebido na fluência das rezas
o galo celestial sobrevoa estradas que nos levam
à porta secreta dos elfos.

desembarquei numa terra desconhecida
enquanto gritavas com um cesto de rêmoras nas mãos:

bruxo é
cavalo santo,
cálido.

Nelson Magalhães Filho

terça-feira, junho 20, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
cão e sujo
fervilha pelas ruas, hálito
acre
ao lado dos vermes.

furtiva sua beleza
no sorvedouro
consumindo-se
e passa portal de fogo
sopra a esmo
escárnio de pélago
finca escamas nas estrelas.

noite após noite
seu brilho estúpido ainda atormenta
clivagem traiçoeira,
astúcia mortal.

Nelson Magalhães Filho



























Da série Anjos Baldios 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
crucial viagem de ônibus
o gesto
enlouquecido do mago

ser excesso;
voltejar-bizarro
as aves sem nome
nas ervas

vaguear só
sem pétalas

sua presença fugaz, e
deslizo nas almas
dos passageiros
como um feiticeiro.

Nelson Magalhães Filho

segunda-feira, junho 19, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
agora a lua parece o olho do anjo:

escrever cartas de amor insano
cravar-me tatuagem de uma lembrança,
um jarro partido.

mordem espinhos a abóbada carpideira
pássaros selvagens mortos no pomar
pássaros angélicos comendo os lobos.

estrelas.
pássaros vermelhos iluminados no candeeiro.

jazem lágrimas de agora: cinzel
seu corpo no santuário uma lua
o olho do anjo.

Nelson Magalhães Filho

domingo, junho 18, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm

sexta-feira, junho 16, 2006

quero um pacto subterrâneo.
você transfigura-se num oceano terrível
antes da faca,
da serpente
o verdugo.

Nelson Magalhães Filho

quinta-feira, junho 15, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
os amores sempre terminam.
lembro-me de você rasgando pelos olhos
um anjo do senhor.
os amores terminam em sonhos vis
como nas pinturas medievais
e nas labaredas inchadas.
os amores, sempre travessias burlescas.

Nelson Magalhães filho

segunda-feira, junho 12, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/papel craft, 120X105 cm
dores douradas sem perfume
a televisão ligada fora do ar
um livro antigo na cadeira.
vadiagem
cotidiano demolido
um gato entre o oco
e a imensidão.
petulantes acácias
torta de abacaxi semeada
tertúlias e esmeraldas
prometem essa dor.
insondável bardo
cáustico arremesso de bálsamos
contra o muro das eras
pilotando uma seta ingrata.

Nelson Magalhães Filho























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/papel craft, 120X105 cm

sábado, junho 10, 2006

você pensa que estou esperando
a ausência,
que não chega nunca
com as tarântulas acesas
nem nas vísceras mais escuras
que estupradas pelas brasas
da noite-erma
pudesse me deixar só
e pouco importa.
mas não é isso que me move para o mar
meu bem, pouco me importa
se a tesoura-vertida
amolada pela minha cara de cão
crava tua alma no espelho
aceso dentro mar.

Nelson Magalhães Filho

quinta-feira, junho 08, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/papel craft, 120X105 cm

essa mesma noite
de chuva minha irmã de signo
presa num bizarro triângulo

diário utópico escrito nas noites de lua
velàsquez e a vênus
do espelho

e essa dor?
vago nessas ruas escuras
e mais uma vez
sinto renascer os pirilampos
daqueles tempos em que eu
nem existia.

Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, junho 07, 2006

























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm

você me adora-corrosiva
da dormência
mas nada disso adianta
lambendo os beiços ocultos.
eu desgasto
tudo ao mesmo tempo
incitando sua pureza crua
de demência
até luziada, mas
de uma outra forma,
mais arrojada
de outra-aparência
as tripas
que sobram impetuosamente
nestas nossas vestes
sujas de asas
ouvindo bandoneón
adios nonino.

Nelson Magalhães Filho

domingo, junho 04, 2006
























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/ papel craft, 120X105 cm
um tordo pousa.
corpo que se vai deixando a cama vazia
beberei licores terríveis
urinando nas rosas
mascando folhas verdes: abordei o anjo,
mas ele só tinha brilho de calamidade
constelações carrascas.
o tempo
das saudades já passou
labirintos acobreados
lâminas de isolamento
peito delicado sentindo morte
e centauros. aquiete-se,
destruir a persistência dos relógios
que afloram sem cessar.
inferno
prenhe de animáculos.

Nelson Magalhães Filho























Da série Anjos Baldios - 2004
Mista s/papel craft, 120X105 cm

sábado, junho 03, 2006

quando me saquei te parindo mula dragão
porca, hein, eu te amo como os partos
prematuros dos insetos multiplicando-se
compulsoriamente cada
vez e mais em suicídios
herméticos tocando-nos tanto de leve o rosto
e não sentindo tuas mãos lindas
eu dormente até às vísceras.
cor de revelação dos santos.
ou como beber vinhos coalhados-incensatez
te amo vestida girassol
e duas chaves de marinheiro
penduradas no pescoço delicado e dois enígmas
lidos nas cartas desta madrugada
dama dos visionários recortada de um livro
de fumaça escoada, esverdeando-se.
abarcas,
tu: cavas minha mente
em retalhos
e os segredos deixei-os nas gavetas vazias
querendo-se descobrir àquela fundura.

Nelson Magalhães Filho