Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, julho 06, 2011

A ESTIRPE DE NELSON por Gustavo Rios



Alguns poetas não necessitam de álibi. Ou de se desculpar por escolherem um caminho menos sacal, numa espécie de mea culpa sem jeito quando confrontados com o que por aí chamam de contemporaneidade. Existem poetas que nascem de uma estirpe rara. Dos que insistem em fazer sua literatura sem meneios de cabeça, sem vacilos, sem sentir medo da incompreensão — como se ser compreendido fosse simplesmente conceder, entregar os pontos. Nelson Magalhães Filho vem dessa linhagem. Nobre, irascível, nem um pouco acanhada.
Numa época em que ser poeta é em si um ato de liberdade e coragem, já que os leitores, o "mercado", os editores e talvez uma meia dúzia de colunistas de merda aparentemente concluíram que a poesia está agonizando — enquanto uma platéia de cegos e surdos pede mais barulho, concisão, novidades estilísticas para que ninguém, no fim das contas, entenda picas e permaneça a se enfadar das novidades por eles mesmos desejadas —, surgem novos escritores que pouco se lixam para tais previsões.  Nelson vem dessa linhagem rara. Ao lado de outros nomes poucos conhecidos do grande público, contemporâneos de Nelson, como Sandro Ornellas, Ediney Santana, Lupeu Lacerda e Kátia Borges, só para citar alguns que admiro.
Cachorro rabugento morto em noite chuvosa (Edições MAC, 2010, 69 páginas) em suas poucas páginas é um livro que mostra um tipo de poesia vigorosa e exuberante. Calcada na nobre tradição dos grandes autores que marcaram, com justiça e sinceridade, a escrita poética. Nomes que não se aquietaram na certeza das fórmulas prontas, dos salões literários, que muitas vezes pagaram um alto preço por conta de suas escolhas, mas que escreveram com absurda coragem e com domínio sobre essa coisa chamada vida e sensibilidade, além de dominar o que muitos por aí chamam de técnica — pois agora sei que a escrita não prescinde da técnica no fim das contas, ainda que o autor negue e que seja algo inconsciente; algo como um fio condutor que permeia a obra do artista, uma fórmula que não serve para repetir e cansar o leitor, mas como afirmação de um estilo, de uma busca.
Nelson não teme o exagero. E não o utiliza somente como recurso literário, mas sim como inspiração. Parece não se incomodar em usar o texto longo e palavras que estão em desuso não por falta de mérito, mas pela insistente novidade que um certo e exagerado minimalismo espalha e que surge com a desculpa de que temos pressa, de que tudo é fragmentário, de que textos longos e carregados de fúria não interessam mais — e tudo parece cair numa espécie de repetitivo haicai, num concretismo meia-boca, numa poesia temerosa que se disfarça de inteligente.
Quando Nelson, que além de escritor é artista plástico e produtor de vídeos que podem ser assistidos em seu blogue [ anjobaldio.blogspot.com ], escreve "...embriagado pelo natal com uma grinalda /  de folhas penduradas numa orelha. /  a estridência da música / de nick cave me consome / em saudades devastadoras. / Suscitar sonhos de nuvens luminosas-fragores, / pássaro-noturno transcender / drásticas marés..." ("Vou andar de bicicleta pela tarde", p. 34), não é com a mesma pegada de um poeta que admira o passado e nele se refugia como forma de não correr riscos. Ele dispensa o recurso dos que, mais uma vez por falta de coragem, buscam um tempo em que tudo parecia mais romântico, mais pungente e visceral. Apesar de dominar a escrita e o uso de palavras incomuns, o que Magalhães propõe é uma poesia que possua a mesma força dos malditos clássicos, mas que dialogue com o presente que também pode ser inspirador — na medida em que temos Nick Cave, Win Wenders, Radiohead, Jim Jarmush que, como bem frisa Lima Trindade no prefácio, pode muito bem dialogar com Rimbaud, Blake, Morrison e Dylan Thomas.     
"vivo pastando no mar negro como peixe-boi / estrela do mar negro percorro temporais selvagens / e cada vez mais me perco pela afável noite de ontem / o oco de mim vai vomitando / um sentimento nostálgico de perdas / espelhos de mortos com seus ossos de medo" (p. 16).
Nos seus poemas, vemos um autor que exige de si e do leitor muito mais que uma leitura distraída. Nelson Magalhães Filho, talvez por ser um artista com muitas possibilidades — o visual em seus textos deve ter alguma relação com seus quadros e com os vídeos —, brinda o leitor com um livro que parece pequeno. Mas que possui a força necessária para ser uma obra ímpar.



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O livro: Nelson Magalhães Filho. Cachorro rabugento morto em noite chuvosa.
Feira de Santana: Edições MAC, 2010
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 junho, 2011
 Gustavo Rios é autor do livro de contos O amor é uma coisa feia (7Letras, 2007) e integra a antologia de contos Tempo Bom (Iluminuras, 2010).

Um comentário:

Luciano Fraga disse...

Buenas, com os olhos bem fechados, assinaria embaixo.O "Cachorro..." um dos melhores livros de poesia que li e reli nos últimos anos.A poesia embora ainda desdenhada,nos encanta e salva, belo e justo comentário, abração.