Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Das Elegias: Celeste

De luz e silêncio
o campo que se procura,
com impureza de nuvem,
com o difícil de seiva
de que a matéria se unta.
O que percebido não
foi inventado, como brisa
na face, a mão meiga
do instante sem crueldade;
não é evasão, perceba:
é a gota do cântico
em um mar de cansaços.

João Filho


TRÊS MIL VEZES PUTA

Esgotaste ou minhas mãos inábeis ciscando em torno de? Por que se sonha com os esgarços do seu corpo? Por que em íntima superfície a esperança de resquícios seus? O amor é trambolho, sempre incômodo, ocupa o que não deve. Semana passada caminhaste em mim com seu passo surdo. Você é negativa, vem travestida em manhã nublada de infância e o que daí decorre.

Mas o que acontece é dor. Desimporta o que já exagerei em samba, tela ou lápis, por enquanto, meu trambolho, você se insinua no hálito de cigarro dum velho livresco e na menina espanhola louca que filhosdaputam olhos teus. Toda tarde chuvosa é covardia.

Aprender a perdê-la calado e daquilo tudo que não sei sobre você resplandeço. Apertadamente caminhaste em mim com seu passo surdo. Das cores, você é o branco odiado, claro, se for possível a esta altura alguma exasperação. Não quero teus detalhes e não te direi os meus. Por vaidade, digo que emagreço e tenho cachos longos, e você é este biombo de viés e descomunal erguido com a casa que, para tirá-lo, teria que arrebentar as portas. O que não quero.

Caminhaste em mim, é verdade, mas ultimamente tem sido a solidão mais crua, pois ignora se o fantasma responde; um exemplo? A inútil coragem de rasgar as longas cartas. A aceitação pura e simples da frase como exercício de pieguice. É que escrevo pra você, meu anjo.

Nunca disseste mas adianto – deve admitir pelo menos que a repetição doentia sobre o tema não é de todo má, tem lá suas piruetas. É o que tenho conseguido, meu biombo, neste mundo humano. É ridículo, admito, e o ganho é mínimo. Letrinhas sumirão. Já pensaste nos amantes ahistóricos? E nosso lampejo que não chega a rastro, dizem os simbólicos que é nesse trisco que os amantes se fiam. Pode ser.Você é funda e longe, verbo intemporal. Sou lento e assimétrico, ritmo-lógica fluida. E já me enfado.

O sol da segunda prático e cotidiano não te dissolveu. Neste dia talvez pra você Baco cobra seu óbolo.

Ela é São Paulo, esta massa tumultuada e sozinha apesar de inúmera. Você é o concreto que se ossifica. A rima ingênua e a frase feia.Se não pode ser vivido, por que nasceste? Passo a odiá-la e não sofisme a solidão-distância de Abelardo recapitulada por Rilke, pois, cadela minha, o século não permite tamanha resignação. A carne tem que cantar enquanto é nova, e danem-se as hipóteses contrárias.

Seus buracos, cadela minha, esmoreceram o quê? Nem que não sacie, o ainda desejado é a sova. É que o cheiro maltrata a memória, o volume do corpo sobre quando pacificados (?), porque juntos, se acontecem (o que a cada vez rareia) eles, os corpos, se bastam. Desistência e derrocada, a tal cadela liga bêbada e explode desesperação às três da madrugada, três mil vezes puta (no sangue o rastro de todas as fodedoras desde antes do mundo humano), de todas as buças é a vossa raça. No meu canto estava e vem envenenar-me?! No fundo, minha zanga não esconde seu gozo, porque é angústia viciante, doer dói, mas não renegamos mais uma dose, três mil vezes... A beleza da dor?

João Filho

2 comentários:

Anônimo disse...

o lugar comum torna-se o incomum tres mil vezes putas é interessante na desdecodificação do mais comum dos comuns - a relação homem - mulher que ganha um espaço unico de dor - doença - cura na des - revelada crueza de um amor canonico em toda sua desmedida que é a medida exata de sua sobrevivencia e de sua não amencia.

Anônimo disse...

Pois é anjobaldio: é na luz e no silêncio que se pode ver a beleza da dor, alguém pode ver! Eu prefiro ver a beleza na alegria...

mas, ver a beleza na dor é um baita de achado no silêncio! isso é vero.