Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

segunda-feira, abril 07, 2008

Egon Schiele

ainda resta acender um cigarro, comer uma cereja
afogueada. é foda
esse palor noturno e belo, e voragem
é o esquecimento que desconsola quando chove
e desta antiga janela
enxergo lá embaixo meus pensamentos ultrapassarem
as ruas encharcadas de receio.
desesperadamente sonho com tuas mãos
ocas e sinuosamente teus seios envoltos
em flores selvagens despedaça minha agonia.
não há mais amor na noite que estronda
sem ninguém lá fora que me acene um adeus
ou um rinoceronte vadio que ronda
meu azedume de cerveja quente
e vinho barato:
pedras incrustadas nas gretas das portas,
um amor sombrio que dos seus beijos felinos
vem os jasmins: desejo é sempre
cálido remorso.

Nelson Magalhães Filho

8 comentários:

Luciano Fraga disse...

Buenas,um belo mergulho no fundo de águas raivosas,um salto no vazio da indignação para submergir furioso por conta de um desejo que causa remorsos,demais.

Samantha Abreu disse...

isso é o amor e tudo o que ele é capaz...
adoro ler-te, amigo.

Um beijO!

Kátia Borges disse...

Belo e visceral, como todos os seus poemas, Nelson. Beijo

joanarizerio@gmail.com disse...

Eu gosto da sua poesia, e seus quadros também, são lindos. Sabe o que me lembra? os poemas de Rubem Braga, se não leu, tem que ler, é demais. E anjo baldio é um nome que eu adoro desde que vi pela primeira vez, perdido num conto de Pablo. Beijos!

Ruela disse...

Grande Egon Schiele,
belo poema.



Abraço.

Dani Morreale Diniz disse...

E a delícia nos escombros de ser quem é.

Zinaldo Velame disse...

Magalhães! Sempre faca, sempre lâmina afiada. Suas palavras cortam e penetram à carne. A imagem também é bela e misteriosa. Você sempre surpreende. Abraço, Buenas!

Miranda disse...

Maravilhoso poema!!
Festejo este rinoceronte e o cálido remorso que nos acompanha!!

Belo, intenso, rasgado...

é isso!!