Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.
Nelson Magalhães Filho
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)
Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho
Nelson Magalhães Filho. Página do DIÁRIO DO ARTISTA, 2004, mista s/papel, 15X21 cmESTAS MALDITAS SIMBIOSESpara Gláucia Guerra, ao som de
Chavella VargasQuisera eu poemas alinhavados com as pedras destes caminhos alucinantes, onde meus pés sangram cheios de plânctons. Para que serve a poesia? De muito longe, muito além dos sargaços, Gláucia flutua nas maresias floridas de outrora, degustando textos raivosos de peles e luas, palavras para acordar perfumes secretos de acácias, talvez almíscar, ou mesmo suores de lírios. A arte é pura? Devagarmente Gláucia murmura cinzas dos relógios e de asas. Então, ouviremos tangos por esta mesma madrugada de vinho, um pulsar de carne que expele o verbo antes do amanhecer e entoaremos litanias malditas entre centelhas difusas, que toda arte exige paixão. Para se aproximar da vida, a poesia não pode ser pureza, porque é uma forma de rezar. Porque quando vem a noite, os deuses defloram as brumas ao som de um Debussy absorto em vago torpor. É quando sinto o hálito estranho dos pássaros que não dormem nunca. É assim que fios de sangue caem de outras dores e é assim que entonteio-me com a aurora boreal ardendo como um gozo rústico de amora. Os campos já estão minados. E para que a poesia? Para os peixes, para curar, para rasgar tâmaras acesas dentro de mim. Porque a vida é monstro.Nelson Magalhães Filho
2 comentários:
Um texto para degustar, com um bom vinho e uma boa musica e também para pensar:
para pensar a arte;
para pensar a poesia;
para pensar a estetica;
e para saber que a poesia não é somente um escrever versos bonitos antes a poesia é desbravar novos mundos, e é uma reza sendo uma reza mais que reza, é na verdade uma conversa com os deuses.
Nelson,a vida é mesmo monstro que deve ser abatida,como Tezeu e o Minotauro,desbravada em lutas hercúleas,massageada com linhas e palavras como as do texto.Não há como não se render e entregar-se de corpo e alma...
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