Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

terça-feira, junho 19, 2007

Nelson Magalhães Filho. Página do DIÁRIO DO ARTISTA, 2004, mista s/papel, 15X21 cm


ESTAS MALDITAS SIMBIOSES

para Gláucia Guerra, ao som de Chavella Vargas

Quisera eu poemas alinhavados com as pedras destes caminhos alucinantes, onde meus pés sangram cheios de plânctons. Para que serve a poesia? De muito longe, muito além dos sargaços, Gláucia flutua nas maresias floridas de outrora, degustando textos raivosos de peles e luas, palavras para acordar perfumes secretos de acácias, talvez almíscar, ou mesmo suores de lírios. A arte é pura? Devagarmente Gláucia murmura cinzas dos relógios e de asas. Então, ouviremos tangos por esta mesma madrugada de vinho, um pulsar de carne que expele o verbo antes do amanhecer e entoaremos litanias malditas entre centelhas difusas, que toda arte exige paixão. Para se aproximar da vida, a poesia não pode ser pureza, porque é uma forma de rezar. Porque quando vem a noite, os deuses defloram as brumas ao som de um Debussy absorto em vago torpor. É quando sinto o hálito estranho dos pássaros que não dormem nunca. É assim que fios de sangue caem de outras dores e é assim que entonteio-me com a aurora boreal ardendo como um gozo rústico de amora. Os campos já estão minados. E para que a poesia? Para os peixes, para curar, para rasgar tâmaras acesas dentro de mim. Porque a vida é monstro.

Nelson Magalhães Filho

2 comentários:

Anônimo disse...

Um texto para degustar, com um bom vinho e uma boa musica e também para pensar:
para pensar a arte;
para pensar a poesia;
para pensar a estetica;
e para saber que a poesia não é somente um escrever versos bonitos antes a poesia é desbravar novos mundos, e é uma reza sendo uma reza mais que reza, é na verdade uma conversa com os deuses.

Anônimo disse...

Nelson,a vida é mesmo monstro que deve ser abatida,como Tezeu e o Minotauro,desbravada em lutas hercúleas,massageada com linhas e palavras como as do texto.Não há como não se render e entregar-se de corpo e alma...