Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

sexta-feira, janeiro 04, 2008

FORA DE PORTAS, livro do poeta contemporâneo português Carlos Garcia de Castro
Ilustrações de capa e miolo de Nelson Magalhães Filho
Organização: Floriano Martins
Prólogo: Nicolau Saião
Ed. Escrituras, São Paulo, 2007

FIGURAÇÃO
A noite existe!
E nós despertos,
cegos de vermos as essências puras,
somos o centro material do escuro,
o número geométrico de um volume.

Então, mulher, tu és as minhas veias
tão saturadas do açúcar quente
que aos dois nos faz a tua noite cúbica,
quanto essa luz, curricular, doméstica
- embora prescindível -
acesa num candeeiro
à mesa de cabeceira.

Carlos Garcia de Castro

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