Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.
Nelson Magalhães Filho
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)
Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho
Nelson Magalhães Filho. ANJOS SOBRE O RECÔNCAVO II, 1999, mista s/ tela, 110X105 cm Minha querida Patrizia,prescindiremos de apresentações? A fronhade meu travesseiro está rasgada e contémsinais da saliva que escorria de minha boca.Decerto, uma euforia absurda, à toa, por um trizuma não-região de sonhos ondea metamorfose transfigura o incêndio da agonia.Não posso deixar mais sangrar de mimporque dói. Nada de ficar reinventandoos panos, tanger os pássarosdo meu rosto, ondenão existe salvação, talvez nunca tenha existido.De repente isto não é uma loucura.As pedras absurdas, os paraísosabsurdos. Patrizia iriar-setoda e a cabeleira nessa tarde engolida (ouçode longe Beto Guedes com paisagem da janela!)Eu vou ser eterno vestido de nada. Um beijoirado, como ícone. Introspecção até o limitecontido no final de tudo. Posso toleraro pouso cínico dos pombos, a argila florescenteque modelamos nossas angústias.Volto a medir o tempo desta música sinistracomportada em mimatravés do conteúdointranquilo do não-desejo, consumido.O meu sonho não dura mais que nada.Esgotou-se em mim toda a imensidão, todas asciladas do sumiço. Fatal estar vivo é. As coisasrapidamente fazem-me despir abismospara fora de minha própria ausência. Agoraé a hora do cristal.Desculpe minha insígnia felina, indecente.Não pouparei um relâmpago qualquer. Nossasmentes desagregam-se em velocidadessatânicas. Você Patrizia, acreditaem céu-inferno? Tragos varando lado-a-ladoteu escuro hálito.Tenho roubado demais o que há de maisescondido atrás das janelas de tua alma-nua.Sim, o espelho é uma anestesia de silêncios, flores amarelas. Provarei teus demônios,démarches necessárias para se esvaziardepressa a desconfiança que as horasnos jogam.Puzzle, um punhado de obstinadaadivinhação. Contradições insólitas.Estou desacostumado a não cozer as fomes.Desatino, inquestionável apagar a superfíciede nossas ações? Uma desatada aberturade veia no escuro,o vício de pesadelos cada vezsemoventes, os subterrâneos ocultos.Arranco estrelas, afogo-me nelas, deixo-meà tona, arrasado, assemelho-me ao caos,e saio violentamente destatransparência macia,náusea de gato...É tão profundo amar você Patrizia, a gramav... Sempre gostamos de viajar como um vidro:íntima fundura sem causalidade alguma. Meuespírito é uma nuvem, persigo ardosamenteo céu engravida-me, sou tão feliz.É maravilhoso aquecer-me em teusorriso Patrizia(orquídea grávida sem destino).Ontem mesmo li nas pulsações de Clarice queviver é uma espécie de loucura que a mortefaz.Beijos,teu Sinho.Nelson Magalhães Filho
Nenhum comentário:
Postar um comentário