Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, agosto 01, 2007

Pintura de Nelson Magalhães Filho

AMÁLGAMAS NO DRAGÃO

“... Não sei exatamente quando Ariadne começou a me irritar. Havíamos passado a noite fazendo amor e estávamos tomando café com bolo e queijo tranqüilamente quando de súbito ela co­meçou a falar daquela maneira desagradável sobre assuntos que em absoluto não me diziam respeito. Senti uma raiva inespera­da brotar dentro de mim à medida em que ela me falava de seus outros casos amorosos. Falava com calma e naturalidade en­quanto me avaliava com seus olhos grandes e travessos e, creio, que um pouco assustados. A cada palavra dita, uma raiva surda e inútil crescia pouco a pouco, levando-me aos limites do insu­portável. Olhei para fora da janela perscrutando o tempo e dei com um céu azul de Kandinsky, perfeito na sua paz de peque­nas figuras infantis. Paz temporária, eu bem o sabia. Na minha mente, já a essa altura bastante perturbada, corriam pensamen­tos velozes. Mulheres recalcadas, carentes, cheias de medo e não me toques, cobras venenosas, Evas insaciáveis, anjos do mal, flores de estufa, dondocas, putas sem classe. Ela fingia que não percebia o reflexo que sobre mim estavam tendo suas palavras. Tensos saímos do apartamento e eu acompanhei-a até o carro. Durante o percurso, proferi as mais cruéis ignomí­nias. Dominado completamente pelos meus mais secretos e poderosos íncubos, agredi-a tenazmente com toda a mordaci­dade de que fui capaz e ela foi se tornando frágil e delicada como uma taça de cristal inacessível ao toque sedento dos meus lábios. Já no carro, ao percebê-la prestes a chorar, foi que pela primeira vez, desde em que a tomara emocionado em meus braços, me dei conta de mim e do meu desespero louco e, surpreendido com minhas próprias palavras e com o efeito que elas podiam estar causando em Ariadne que, a essa altura já não ria, disse em meio àqueles absurdos todos sussurrando rouco ao seu ouvido:
- Você fica linda assim de branco num sábado de ma­nhã, meu amor. Não sei o efeito que essas palavras tiveram em seu cérebro, mas em mim, elas tiveram o efeito de uma implosão e, de repente, eu me vi preso ao chão, incapaz de dar nem mais um passo sequer ou de balbuciar uma só palavra. O ruído do motor do carro martelando meus ouvidos não me impediu de ouvi-la dizer num tom baixo e abafado, cheio de sinceridade:
- Vou sentir saudades suas.
- Não sinta não, viu? Respondi entre irritado e confuso. Afaguei seus braços de leve como quem engana uma criança com um doce e afastei-me dali o mais depressa que pude. A verdade havia sido excessiva para nós dois e eu precisava urgentemente ficar sozinho para poder ref1etir. A emoção demasi­ada urgia que nos afastássemos um do outro para que pudésse­mos tecê-la ordenadamente, como fios de macarrão transparente, intricados e emaranhados fios entre algas marinhas, como as babas de moça que eu insistia em não provar, como my baby is got blue eyes e eu insistia em não ver.
Naquela noite recusei-me a vê-la apesar de seus insis­tentes telefonemas. Pretextei sono, cansaço, tudo para não vê-­la, eu que na véspera perdera a voz algumas vezes só de olhar para ela e enxergá-la na menina dos meus olhos, entre assus­tada e perplexa com a velocidade dos últimos acontecimentos.
Não, não jogue as tranças, Rapunzel, não me espere Julieta, eu não me afogarei consigo, minha doce Vírginia, não se jogue da ponte Ermelinda, não, por mim não, seria tudo inú­til, trágico quadro de borboletas multicoloridas aprisionadas na parede de um quarto qualquer.”

Dalila Machado


Dalila Maria Cordeiro Machado (Salvador - BA) é contista e Doutora em Letras pela UFBA, sobre os poetas malditos Junqueira Freire, Pedro Kilkerry e Alberto Luiz Baraúna, com a tese Os Tempos fáusticos na lírica do lugar.

3 comentários:

Vieira Calado disse...

Excelente gravura.

Anônimo disse...

Obrigado Vieira.

sandro so disse...

Diferente. As tintas continuam carregadíssimas, mas o corpo azulado da mulher dá menos peso (contrapeso?) às tintas, o cabelo caído também. Uma outra delicadeza.
Valeu, Nelson!