Nelson Magalhães Filho. Série 2004-2006, mista s/ papel, 70X50 cm
O CANTO DOS CACHORROS INSANOS
Eu bem que poderia ser o rapaz mais melancólico de Cidade das Sombras, mas ainda dava para ouvir Hey, that's no way to say goodbye na voz cavernosa de Leonard Cohen no meu surrado discman e ficar comovido com as canções que Tarcísio-buenas escutava bem alto naquele inverno doloroso, depois de comer-cerejas e se converter em charcos de vodka barata. Mas essa noite lembrei-me apenas das muitas seringas manchadas de um estranho líquido que circula em abundância por estas tristes ruas impulsionado pelos movimentos do coração, tá ligado? Solitude áspera, cara. Peguei no livro Contos de Agosto de Pablo Sales e dei uma lida rápida. Estou ouvindo Vic Chesnutt. Invernia de Agosto. Qualquer noite, destas que a gente-sangrados sob uma pálida lua sinistra, um embrenhar-se na cidade de Cruz das Almas reconvexa, evocando suas ruas inóspitas, bares imundos, seus anjos marginalizados e, muita dor, muita. Só resta escrever uma existência imaginada em danação, até a desgraça pervertida. Chove. Praças de árvores velhas e jardins esquecidos, um circo que nunca tenha existido coberto de manchas negras que o tempo doloroso mofava zombarias melancólicas: são diários, fotografias, discos, filmes e bichos. O velho tédio cruzalmense, os frutos vermelhos e doces das ruas violetas das ruas mais que felinas. O vampiro da Suzana ataca novamente. Drugstore Cowboy ou naquele outro filme com Mat Dillon, Alguém para Dividir os Sonhos. O porra do Pedro que nunca derramara lágrimas, precipícios de putas gostosas com flores-neuróticas nos cabelos. Vago de bicicleta pela Rua das Pitangas encoberta de morcegos, fazendo versos de amor para Mariana. Tudo como um filme antigo num cinema corrompido pelo tempo, onde ouvimos Tom Waits, Nick Cave, Velvet Underground, Marianne Faithful. Tanto faz o livro de Kafka sobre a mesa ou a bela Layla com suas unhas de sangue lembrando-me uma tarde de Caio Abreu... Cruz das Almas está devassada por um estranho perfume recheado de barbitúricos que impregnam os corpos de seus habitantes-lobos, amores-bandidos e duendes. Esta cidade tem uma cauda de dragão voltada para um oceano de vivências perversas. Estes temporais de agosto apodrecem os olhos de Joana por suas ruas vadias. Enterrarei rosas vermelhas em seus jardins. Calcar com os pés nos cravos e begônias. Como as fotos da beleza venenosa de Lorena. Ela tinha um piercing na língua e quanto mais profundamente triste mais bela ficava. Ouvia aqueles blues e tripudiava muito com a sorte. Sentia falta da Lorena... Cruz das Almas, mon amour, Cidade dos Sonhos, cidade dos girassóis mortos. Bar de Turíbio sábado à noite com Patt Smith numa rádio qualquer. Ou Billie Holiday. Chupar-cerejas pensando em Angelina Jolie e com ciúmes da lasciva Verinha... Também Milles Davis, Lou Reed num coreto de praça, dores azuis, forte soprava o vento. Lembro Lita Passos toda de negro bebendo chá de duas gardênias e um lírio. Ovelhas mortas, Maysa, Ângela Ro Ro, punks cruzalmenses. Penso em Béatrice Dalle, em Betty Blue para... em Salatiel tatuado com as dores do Recôncavo, desacostumado com o tempo cinza de agosto. Lágrimas profanas racham minha cara e, numa banheira velha de louça, bebo losna pela madrugada das vacas sagradas. Patrícia Mendes com os lábios borrados dos lilases como Sora Morela no Teatro do Porão em Um Trem da Cobiça ou A Rua das Lástimas, sempre com uma flor entre os dentes ou bizarrias quantas, Patrícia é uma poeta estranha. Agosto arrasta-me para os bosques de serpentes verdes, para as águas de gaivotas bravias em La Playa. O simulacro dessas águas espalham pó de almíscar por toda a noite em que Quentin Tarantino encontrou Jack Kerouac na Rua da Estação, nesta cidade das brumas onde nasceu Lakarus. Pros culhões, o porra do Lakarus que vá vomitar em suas próprias orquídeas, tá ligado? Sabe Júlia, aquelas coisas percorrendo as veias podem ser crisântemos, pode ser que não. Apenas sei que não sustentam borboletas. Adoro Francis Bacon e Sante Scaldaferri, mas o que Paulo mais desenhava eram aves... Como disse antes, não conheci nenhuma Helena nessas noites-de-cerejas e tudo, mesmo uma fímbria estranha de desejo a noite, as cerejas...
Nelson Magalhães Filho
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Há 4 dias
3 comentários:
Nelson, muito bom o teu texto. Ganhei o dia vindo aqui. Voltarei. Parabéns.
Buenas,se Lakarus tiver vergonha na cara,exclama um PUTA MADRE e cai fora.Tô ligado... Texto muito legal.
NELSON NO MEU BLOG TEM UM TEXTO FALANDO SOBRE A PRODUÇÃO LITERARIA DE CRUZ DAS ALMAS.
QUANTO AO SEU TEXTO É UMA VIAGEM COM DESTINO À CAPACIADE DE ENTENDER A VIDA E NÃO MAIS ANDAR NO MUNDO DAS LAMENTAÇÕES. UM BOM RECADO PARA QUEM AINDA SONHA EM SER
UM MERO FILHO DE DEUS.
RONALDO BRAGA
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