O BEIJO MORDIDO PELO PÓ DE LÓTUS AZUL
Naqueles dias sempre me perguntava:
por que peixes e estrelas estão sempre juntos?
Cheguei às 3 da madrugada e liguei o rádio:
"ao sentar-se junto no parque
como o céu à noite na crescente escuridão
ela o viu e ele sentiu uma faísca
tingle to his bones..."
Tinha assistido O Importante é amar
do Andrzej Zulawski,
tudo naquele interminável sonho de inverno,
nem sei se chovia pelas ruas os micróbios
e as auréolas rosas de computadores interdigitais
exterminando os miseráveis
com seus morcegos da Babilônia
já dissipando-se da Praça Senador Temístocles
convertida em labirintos de gardênias
naqueles dias cheios de esperanças
quando, sem que houvessem ressonâncias de desejos
se moendo uns aos outros,
infundíamos uma crença de sereias...
Escrevo uma história isenta de relógios
ou temporais escapados dos telhados,
fabricando orelhas com papelão de sapateiro
como minha avó fazia
sem que ninguém a visse nas imensas noites,
conservando cachos de glicínias em seus cabelos
(a fênix neste oráculo),
e sei que meu corpo é o navio medieval
na lerdeza das revelações:
- Dizei-me em que terra
se encontra Taís de François Villon
ou qualquer cristal de Herzog.
Se tudo isso é bizarro?
Gritem que os olhos encravados de Lorca
viram a branca parede em que urinavam as meninas,
gritem que o carisma metálico da cidade
enforca teu riso no céu de minha rua,
esse nosso beijo mordido pelo pó de lótus azul.
Lembrei-me duns trechos assim:
"Isso não é um lamento, é um grito de ave de rapina.
Irisada e intranquila" a lágrima na face
insana de Lucienne Samôr.
Lembrei-me de outras,
eu pintava A Luta de Jacó com o Anjo
enquanto uma luz apodrecida plantava peixes
e estrelas em teu corpo.
Egon Schiele lograva em ameaçar com as pontas dos dedos
corroendo espelhos e gestos
já não depuram o mal de cada expressão.
Resvalo meu olhar nesse tempo.
Não se concederá tecer o jogo ambíguo de Kaspar Hauser
a palavra acanhada desta história
turva a frágua
manobrando artimanhas.
Existem outras coisas lembrando relatos
de encantamento, cera de abelha, um anoitecer
relicário de óleo de rícino, anáguas, manjericão
e agora eu tinjo teus cílios com jurubebas
parentes de copaíbas e milagres.
Nelson Magalhães Filho
Um comentário:
lembranças brotam e fervilham minha mente,lendo esse seu texto, nelson.lembrança da mula sem cabeça, do lobisome, e de tantas figuras imaginadas,ameaçadas, e de figuras apenas sonhadas.riquezas não mensuradas.o que seria de mim sem a literatura, eu seria apenas ronaldo, o bruto.bruto e perdido nas faces babacas dos meus vizinhos de epoca.
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