Teu cheiro amarfanho durante toda a cidade
e nos dentes postos sobre a mesa
como um escapulário tua lascívia eu pressinto.
Nem a lua nem teus olhos certamente me salvarão deste teu cheiro espesso.
Eu cresci nestas estranhas paragens sem estrelas entre bichos e flores
como se não fossem cobertos pela escuridão.
Apenas arfava um golpe entre o vazio de mim
e a captura de insetos do inferno em teus cabelos.
Em inquietude, me preparo para a dor.

Nelson Magalhães Filho


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos

do mundo."
( Fernando Pessoa: Tabacaria)




Realizar trabalhos de arte a base das experiências existenciais, como transpor as imensidões dolorosas das noites urinadas. Fingir figuras concebidas do desejo e da amargura. Instigações obscurecidas pela lua. Não acretido na pintura agradável. Há algum tempo meu trabalho é como um lugar em que não se pode viver. Uma pintura inóspita e ao mesmo tempo infectada de frinchas para deixar passar as forças e os ratos. Cada vez mais ermo, vou minando a mesma terra carregada de rastros e indícios ásperos dentro de mim, para que as imagens sejam vislumbradas não apenas como um invólucro remoto de tristezas, mas também como excrementos de nosso tempo. Voltar a ser criança ou para um hospital psiquiátrico, tanto faz se meu estômago dói. Ainda não matem os porcos. A pintura precisa estar escarpada no ponto mais afastado desse curral sinistro.
Nelson Magalhães Filho

quarta-feira, janeiro 03, 2007

O BEIJO MORDIDO PELO PÓ DE LÓTUS AZUL

Naqueles dias sempre me perguntava:
por que peixes e estrelas estão sempre juntos?
Cheguei às 3 da madrugada e liguei o rádio:
"ao sentar-se junto no parque
como o céu à noite na crescente escuridão
ela o viu e ele sentiu uma faísca
tingle to his bones..."
Tinha assistido O Importante é amar
do Andrzej Zulawski,
tudo naquele interminável sonho de inverno,
nem sei se chovia pelas ruas os micróbios
e as auréolas rosas de computadores interdigitais
exterminando os miseráveis
com seus morcegos da Babilônia
já dissipando-se da Praça Senador Temístocles
convertida em labirintos de gardênias
naqueles dias cheios de esperanças
quando, sem que houvessem ressonâncias de desejos
se moendo uns aos outros,
infundíamos uma crença de sereias...
Escrevo uma história isenta de relógios
ou temporais escapados dos telhados,
fabricando orelhas com papelão de sapateiro
como minha avó fazia
sem que ninguém a visse nas imensas noites,
conservando cachos de glicínias em seus cabelos
(a fênix neste oráculo),
e sei que meu corpo é o navio medieval
na lerdeza das revelações:
- Dizei-me em que terra
se encontra Taís de François Villon
ou qualquer cristal de Herzog.
Se tudo isso é bizarro?
Gritem que os olhos encravados de Lorca
viram a branca parede em que urinavam as meninas,
gritem que o carisma metálico da cidade
enforca teu riso no céu de minha rua,
esse nosso beijo mordido pelo pó de lótus azul.
Lembrei-me duns trechos assim:
"Isso não é um lamento, é um grito de ave de rapina.
Irisada e intranquila" a lágrima na face
insana de Lucienne Samôr.
Lembrei-me de outras,
eu pintava A Luta de Jacó com o Anjo
enquanto uma luz apodrecida plantava peixes
e estrelas em teu corpo.
Egon Schiele lograva em ameaçar com as pontas dos dedos
corroendo espelhos e gestos
já não depuram o mal de cada expressão.
Resvalo meu olhar nesse tempo.
Não se concederá tecer o jogo ambíguo de Kaspar Hauser
a palavra acanhada desta história
turva a frágua
manobrando artimanhas.
Existem outras coisas lembrando relatos
de encantamento, cera de abelha, um anoitecer
relicário de óleo de rícino, anáguas, manjericão
e agora eu tinjo teus cílios com jurubebas
parentes de copaíbas e milagres.

Nelson Magalhães Filho





Um comentário:

Anônimo disse...

lembranças brotam e fervilham minha mente,lendo esse seu texto, nelson.lembrança da mula sem cabeça, do lobisome, e de tantas figuras imaginadas,ameaçadas, e de figuras apenas sonhadas.riquezas não mensuradas.o que seria de mim sem a literatura, eu seria apenas ronaldo, o bruto.bruto e perdido nas faces babacas dos meus vizinhos de epoca.